Em 15 dias, três servidores penitenciários tiraram a própria vida

Problemas da profissão aliados à falta de assistência con

Problemas da profissão aliados à falta de assistência contribuem para o desespero e a depressão dos profissionais, tornando-se possíveis causas dos suicídios

Condições adversas da profissão fazem com que servidores penitenciários tenham que realizar constantes manifestações para reivindicar direitos. Foto: Lucas Mendes/SINDCOP

Por Lucas Mendes

Em São Paulo, na madrugada de segunda-feira, 3 de julho, Welcio Bernardo Martins, Agente de Escolta e Vigilância Penitenciária (AEVP), perseguiu a ex-namorada quando ela se dirigia para o trabalho. Às 5h43 ele alcançou a mulher e a prensou contra uma parede. Segundos depois fez um disparo com uma pistola, atingindo a cabeça da ex-companheira.

Após o tiro ele deixa o local. Apesar de ter sido socorrida, Marilene de Souza Melo não resistiu ao ferimento e morreu no mesmo dia. Familiares da vítima, em entrevista à TV Record, relataram que Welcio Martins batia na namorada, mas ela não tinha feito nenhuma denúncia contra o ex-companheiro. A suspeita é de que Welcio não aceitou o fim do relacionamento, e cometeu o feminicídio.

Depois do crime, Martins retornou à sua casa, na Zona Sul de São Paulo, onde gravou uma mensagem de whatsapp para seus conhecidos, aparentando estar transtornado com a situação e pedindo desculpas. No mesmo dia ele tirou a própria vida com um tiro. 

Na primeira metade de julho outros dois agentes penitenciários também cometeram suicídio. Além de Martins, que trabalhava na Penitenciária de Parelheiros, Gian Muchau, da Penitenciária I de Potim, tirou a vida no dia 2 e, onze dias depois, foi a vez de Custódio de Souza Junior, do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, em São Paulo, realizar o ato. Os dois últimos eram agentes de segurança penitenciária (ASP).

Superlotação das cadeias contribui para tensão entre presos e agentes. Foto: Agência Brasil.

Trabalho e transtorno mental

Estado com maior número de presos do país, São Paulo representa aproximadamente 36% da população carcerária nacional. Nas 168 unidades prisionais paulistas, 23.383 agentes de segurança penitenciária se defrontam com 224.491 detentos, segundo dados de novembro de 2016 do Portal da Transparência do governo estadual e da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), respectivamente. 

Essa proporção significa que cada agente deve cuidar de 9,6 presos – o dobro da recomendável pela Organização das Nações Unidas (ONU) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), para os quais a estimativa ideal seria um agente penitenciário para cada cinco presos. Os números mostram uma sobrecarga de trabalho referente ao déficit de 48% no efetivo de agentes. As duas categorias de trabalho do sistema prisional, o agente de segurança penitenciária (ASP) e o agente de escolta e vigilância penitenciária (AEVP) estão no regime de trabalho em plantões de 12h por 36h.

Adoecendo

De acordo com Antônio Geraldo da Silva, psiquiatra, presidente eleito da Associação Psiquiátrica da América Latina (APAL) e Rosylane Mercês Rocha, médica do trabalho, presidente da Associação Brasiliense de Medicina do Trabalho, em artigo recente publicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o déficit funcional no sistema penitenciário causa, nos plantões de trabalho, uma tensão permanente. 

“O trabalhador precisa estar alerta durante toda a jornada laboral, o que acarreta um nível de estresse altíssimo”, argumentam os especialistas. Eles enumeram as principais doenças que acometem os agentes: “Transtorno misto de ansiedade, síndrome do pânico, depressão, estresse pós-traumático, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dor crônica e tuberculose”, consequências do trabalho que são agravadas pelo “completo desrespeito às normas de segurança e saúde, a falta de assistência médica e psicológica, a insegurança e o alto índice de estresse ocupacional”. 

No artigo de Silva e Rocha, a conclusão é categórica: “é urgente que o Estado adote medidas de saúde e segurança nos presídios e promova assistência à saúde física e mental dos agentes penitenciários”.

Estado finge que não vê

Dentro das unidades prisionais paulistas a atribuição dos profissionais da saúde é direcionada aos presos. “Nos últimos tempos aumentou-se a população carcerária e diminuiu-se o contingente de funcionários, principalmente na área de saúde”, afirma Vânia Regina Pereira de Souza, psicóloga aposentada da SAP. 

Ambiente inseguro e insalubre contribui para piora na saúde mental dos servidores. Foto: Divulgação / Sejuc-RN.

Ela explica que os funcionários da saúde não são destinados aos servidores, “a não ser em casos em que o funcionário ‘surta’, aí ele é encaminhado para o profissional. Mas em unidade que não tem psiquiatra ele vai para uma UPA, ou pronto socorro”. Para Vânia, que trabalhou por 22 anos como psicóloga nas unidades prisionais, o Estado vê o funcionário como um número, não como uma pessoa. 

“Quando o agente chega nesse estágio, de cometer suicídio, ele já deu algum indício lá atrás que não está bem”, aponta. “É obrigação da própria unidade atentar para isso”. Segundo a psicóloga, como a SAP não oferece essa assistência, muitos recorrem a um atendimento fora do Estado, o que pesa no orçamento. “Geralmente culmina nisso aí, tantos suicídios que vemos. É o grau de desespero da pessoa”, conclui. 

Outra questão do dia-a-dia diz respeito ao “emparedamento” – situação que afeta tanto o preso quanto o servidor. “O servidor penitenciário, assim que ingressa, tem uma preparação muito pequena sobre o que é o serviço, e ele é lançado nesse mundo do emparedamento”, ressalta Gilson Pimentel Barreto, presidente do SINDCOP. 

“É matéria abordada em direito penal, que fala do adoecimento do sentenciado, com os primeiros anos de pena, mas se omite o mesmo em relação ao servidor, que também sofre os efeitos desse emparedamento”, explica.

A falta de recursos e estrutura do Estado também é sentida diretamente pelo agente. “É o servidor quem vai avisar o preso que não tem médico, dentista, remédio, colchão, roupa, e isso vai contribuindo com a tensão entre população carcerária e servidor penitenciário”, diz o presidente do sindicato.

Entendendo o problema

“Se você fizer uma pesquisa de como a pessoa era antes de começar a trabalhar no sistema e depois, vai perceber que ela muda muito, e, principalmente que quem vai ser mais afetado é a família”, afirma a psicóloga Vânia Pereira de Souza. 

Ela ilustra a situação com o constante abuso de álcool e drogas por parte dos agentes. “Os que não têm problema com drogas acabam não tendo tempo, pois fazem jornada dupla, trabalham em bicos, então não têm tempo pra família ou amigos”. 

Ninguém admite que esteja entrando num estado depressivo, assegura a psicóloga. “Então começam as dificuldades pra dormir, engordar ou emagrecer, algo fora de controle. Só que a pessoa não admite e vai protelando, e essa depressão vai tomando conta”, exemplifica. “A SAP deveria ter um preparo antes e durante a permanência do funcionário dentro do sistema. Embora isso não seja valorizado pelo Estado, mas para o agente penitenciário é de grande valia e também para a sociedade”, defende. 

Para Gilson Barreto, com relação ao acompanhamento do servidor o governo do Estado é “totalmente omisso”. “Não existem programas de acompanhamento da saúde, a administração negligencia os cuidados com trabalhadores da pasta”, diz. 

CPP3 de Bauru após rebelião no inicio do ano. Foto: Inês Ferreira.

O presidente afirma que a preocupação da SAP é com relação ao investimento de construção de unidades. “Você não vê a preocupação na contratação de servidores, reposição de quadros funcionais, na mesma proporção que se constrói unidades prisionais. Infelizmente na nossa ótica a situação tende só a se agravar”, denuncia.

“O Estado falhou”

“O Estado falhou. Pra mim o Estado foi omisso”. A acusação é de Bernardo Martins Filho, irmão do agente de escolta Welcio Bernardo. “É um ambiente pesado”, continua, “então o Estado periodicamente deveria passar esses profissionais por um psicólogo, deveria ter esse acompanhamento”. Para Bernardo o acompanhamento médico serviria como “válvula de escape”. 

“Um profissional preparado pra ouvir poderia até dar uma licença, um afastamento, pra ele se cuidar”, defende. “Honestamente eu jamais imaginaria que meu irmão cometeria um ato desses, um ato suicida, um ato de assassinato”, confessa. “Jamais imaginei que um dia ele perderia a cabeça dessa forma e fizesse o que ele fez”. 

Ele conta que seu irmão era reservado, “deixava muita coisa por cima e não aprofundava seus problemas”. Ele soube por terceiros que Martins vinha se queixando que estava se sentindo sozinho. 

Outro fator que pesa na profissão é a relutância em encarar o problema. “Esses caras não gostam de reconhecer fraqueza, querem dar uma de durão. Mas estão totalmente abandonados”, conta Bernardo. 

Mesmo que não seja possível atribuir exclusivamente à profissão os transtornos psicológicos do servidor, ou vincular os casos de assassinato, como o que Martins cometeu, às dificuldades da categoria, o impacto mais próximo do dia-a-dia no sistema prisional é sentido pela família e pelas pessoas mais próximas.

Alerta já foi dado

No relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) sobre as contas de 2016 do governador Geraldo Alckmin (PSDB), emitido em 21 de junho, o parecer considerou que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) descumpriu as metas estabelecidas no orçamento do Estado para a criação de novas vagas no sistema prisional. 

Além disso, o relatório ressalta que, mesmo se as metas fossem cumpridas, não aliviariam o déficit de vagas. 

Há também a constatação de que o quadro de profissionais da área da saúde, como médicos e técnicos de enfermagem, está com mais de 90% dos cargos sem preenchimento, e que 80% das unidades prisionais não contam com equipe mínima de saúde. 

Outra ressalva feita pelo TCE diz respeito à relação agentes/presos. Atualmente os números apontam para 10 presos por agente, valor que está acima da média nacional, que tem 7,61 presos por agente. 

Para o SINDCOP este alerta é preocupante. Num ambiente que era pra ter 15 detentos tem 50. A cela tem que comportar o preso pra dormir, tomar banho e fazer suas necessidades pessoais. Essa convivência insalubre ajuda a proliferar doenças infectocontagiosas”, destaca Gilson.

Conforme afirma o presidente, todas as unidades do sistema penitenciário paulista estão abaixo do padrão funcional, estipulado pela administração entre 170 e 180 servidores por unidade. “Em contrapartida, todas essas unidades estão superlotadas”, diz. 

Além dos problemas da profissão, os servidores ainda estão com salários defasados. Segundo Gilson, são três anos sem nenhum reajuste, nem o repasse da inflação. “Nós vemos da parte do governo um total descaso com relação a esses trabalhadores. A pressão financeira também desenvolve adoecimento”, finaliza.