Ao se referir à chacina ocorrida no último dia 2 de janeir
Gilson Pimentel Barreto
A palavra acidente significa imprevisto, um evento inesperado, indesejável que causa danos materiais e pessoais. Pavoroso quer dizer horripilante.
Ao se referir à chacina ocorrida no último dia 2 de janeiro no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Comaj), como um “acidente pavoroso”, o presidente Michel Temer demonstrou profundo desconhecimento dos problemas do sistema penitenciário brasileiro e da origem da violência no Brasil. Não podemos chamar de “acidente” algo previsível, que pode ocorrer a qualquer momento e em qualquer parte de um país que ostenta o 4° lugar no ranking das maiores populações de presos do mundo.
Rebeliões, motins, guerras entre facções e chacinas como a que ocorreu em Manaus são sempre esperadas pelos que conhecem bem o sistema penitenciário brasileiro. Para nós, o ocorrido não causou espanto. Pior, acreditamos que daqui para frente cenas semelhantes serão frequentes, porque isso é um dos reflexos da hiperpolulação das unidades prisionais. Denunciamos isso quase todos os dias.
O Presidente parece desconhecer que vivemos num país com mais de meio milhão de presos, o que significa cerca de 150 para cada 100 mil habitantes e um déficit de mais de 200 mil vagas, cuja população dobra a cada 10 anos.
Vivemos num país com mais de 1.500 unidades prisionais (166 delas no Estado de São Paulo), com uma taxa ocupacional de 161%, ou seja, em um espaço concebido para custodiar 10 pessoas, existem por volta de 16 encarcerados.
Esses indivíduos, a maioria entre 18 e 29 anos, negros e semianalfabetos se amontoam em ambientes promíscuos, depósitos humanos que abrigam todos os tipos de criminosos. Nesses depósitos estão ladrões de galinhas, integrantes de facções criminosas e assassinos vorazes. Indivíduos, como os que protagonizaram o espetáculo de Manaus que mutilaram mais de 60 corpos, cortando mais de 30 cabeças, separando braços e pernas com armas improvisadas e com requintes de crueldade selvagem.
Somente quem já viu uma população de presos enfurecida sabe a sensação de ficar frente a frente com um ser que é capaz dessas bestialidades. Entre os que já tiveram esse desprazer, sem ter cometido crime algum, estamos nós servidores penitenciários. Trabalhamos sem armamento, fazemos parte de quadros funcionais infinitamente menor e desproporcional ao número de presos. Nada temos ao nosso favor. Vivemos encarcerados nesse ambiente insalubre, para ganhar nosso pão e sequer podemos defender nossos direitos humanos.
Não acreditamos em acidente .Todos os dias quando batemos nossos pontos sabemos que o pior pode acontecer. Nós, sabemos que por trás das grades não tem nenhum santo. Conhecemos o poder e a crueldade das facções criminosas e a capacidade desumana e insana de presos que a qualquer momento podem colocar em prática a mais terrível selvageria.
Estamos estarrecidos com a afirmação de Temer, com a ignorância de governantes, de representantes da Justiça, de defensores de Direitos Humanos e de toda a sociedade. Não podemos ficar calados.
Enquanto a sociedade se deleita com as fotos desse circo de horrores, que viralizou na internet, a mídia perde tempo procurando um culpado. Os meios de comunicação seguem fiel o rito da imparcialidade medíocre sem discutir a realidade. Iludem a multidão de expectadores, sensacionalizam os fatos e desviam a atenção da sociedade. O Brasil inteiro tornou-se juiz do problema e juntos procuram um culpado, na verdade um bode expiatório.
Além dos discursos desastrosos que ouvidos, vemos uma Justiça omissa que sequer apontou os nomes dos autores envolvidos na barbárie ou dos que iniciaram a selvageria. Será que esse silêncio tem a ver como os laços de integrantes do judiciário com as facções? Até o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, inocentou publicamente as facções.
Entre os culpados, vemos o espernear da empresa que terceirizou o serviço e depois não deu conta do recado. Será que ao negociar o contrato o governo os empresários não ponderaram e previram a possibilidade do ocorrido? Eles não conheciam o sistema carcerário?
E o Estado? Será que Temer desconhece que foi o Estado que fomentou o surgimento de uma das facções envolvidas na chacina? Será que ele não lembra que foram feitos acordos inescrupulosos, do Estado com criminosos famosos cujo rompimento redundou na megarebelião prisional, em São Paulo, em 2006?
Não foi a primeira vez Presidente. Não foi um “acidente”. Em 2006, foram 132 mortos, sendo 23 PMs, oito agentes penitenciários, seis policiais civis, quatro civis e três guardas civis metropolitanos. Entre os mortos, estavam também 71 suspeitos e 17 detentos em rebelião.
Não foi a primeira vez e nem será a última. O sistema penitenciário brasileiro está falido há muito tempo, assim como o Estado. Dias piores virão.
Infelizmente o nosso Presidente desconhece esses dados e compactua com a mídia, perdendo tempo esperando que apareça um culpado. Quando isso ocorrer ele será escachado publicamente e o Presidente mais uma vez poderá relevar os fatos.
Mas nós, simples servidores do sistema penitenciário, mais uma vez aproveitamos a fala desastrosa de Temer e as trapalhadas da Justiça para lembrar que a violência urbana está diretamente relacionada à desigualdade social que gera marginais por causa da exclusão social.
Não queremos participar desse faz de conta. Queremos ver uma medida que reduza os índices de violência, queremos conhecer programas de ressocialização que funcionem, queremos fazer o nosso trabalho.
Mas para isso, precisamos de governantes e de um judiciário que entenda que é preciso uma ação que atinja o cerne do problema. Precisamos de pessoas que entendam que a violência está ligada à falta de educação escolar, a falta de uma estrutura familiar adequada.
Enquanto nossos governantes não entenderem isso, os bandidos continuaram matando, o governo continuará construindo novos presídios em vez de construir escolas e estes presídios continuarão sendo destruídos pelos bandidos durante rebeliões e chacinas.
Enquanto não investirem em educação e projetos que diminuam a desigualdade social seremos protagonistas de chacinas como essa.
Se a situação não mudar, aos poucos violaremos viver como na Idade Média, quando o Direito era exercido por meio da Lei do Talião, “olho por olho, dente por dente”.
Estamos quase lá. Naquela época também era comum a amputação dos braços, a forca, a roda e a guilhotina que se constituíam no espetáculo favorito das multidões. Muitas vezes o condenado era arrastado, tendo seu ventre aberto e as entranhas arrancadas às pressas para que tivesse tempo de vê-las sendo lançadas ao fogo.
A diferença é que naquela época os governantes sabiam o que estavam fazendo e não nominavam a barbárie de “acidente pavoroso”.