Subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia participou
Para o Subprocurador-geral da República, a solução para a crise penitenciária passa por “mudança de cultura” no Ministério Público e na Justiça. Foto: CNMP/ Conselho Nacional do Ministério Público
Fonte: Assessoria de Comunicação / Procuradoria da República no Estado de S. Paulo
Diante das condições precárias em grande parte dos presídios brasileiros, causa espanto que motins como os registrados em unidades no Norte e Nordeste do país no início deste ano não sejam mais frequentes. A opinião do subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia, coordenador da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal (MPF), reflete as estatísticas que revelam o sucateamento do sistema prisional brasileiro e o desrespeito aos direitos da população carcerária. “É até surpreendente que não haja mais rebeliões”. Bonsaglia participou, no dia 23 de fevereiro, do seminário “Sistema Carcerário Brasileiro – Desafios e Perspectivas”, realizado no MPF em São Paulo.
Levantamento do Ministério Público sobre o sistema prisional publicado em 2016 mostrou, por exemplo, que não havia cama para todos os detentos em 65,9% das 1710 unidades inspecionadas. Já em 26,4% dos estabelecimentos prisionais não havia sequer colchão para todos os internos. A distribuição de materiais de higiene pessoal também não existia em 1/3 das prisões.
O desrespeito de direitos fundamentais e a submissão dos presos a condições degradantes são agravados pelo predomínio de grupos criminosos nas penitenciárias, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Para Mario Bonsaglia, o combate às facções está entre os principais desafios do sistema carcerário brasileiro. “Os que não são filiados são os primeiros a morrer. Os cooptados passam a ter dívidas com a facção. Elas ferem os direitos dos presos e ameaçam a segurança pública, semeando o caos dentro e fora dos presídios”, concluiu. A guerra entre grupos rivais provocou pelo menos 117 mortes nas unidades só este ano, número maior que o registrado em todo o ano de 2013. Em 2015, o índice de homicídios foi de 164.
Ainda que não esteja prevista em lei, a separação de presos conforme a facção criminosa da qual fazem parte acontece em 1/3 dos estabelecimentos prisionais. A fração é maior do que por outros critérios determinados pela legislação, como a separação pela gravidade do crime (identificada em 22,6% das unidades) ou entre presos provisórios e já condenados (existente em 19,4%).
O papel da justiça
Atualmente, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, com 654 mil presos. Destes, 33% são provisórios, ou seja, sem condenação transitada em julgado. Segundo os dados disponíveis, de 2014, o excedente de detentos passa de 260 mil. Para Mario Bonsaglia, a solução para a crise penitenciária passa por uma mudança de cultura do MP e do Poder Judiciário e pela revisão dos critérios usados para manter as pessoas presas.
Segundo ele, à lentidão do Poder Executivo em investir na construção e manutenção de unidades prisionais se soma uma cultura jurídica que opta pelo encarceramento, mesmo em casos de crimes de baixa gravidade. “Há uma grande massa de autores de pequenos delitos, flagrados com pequena quantidade de drogas, por exemplo, que não deveriam estar presos, e na cadeia acabam cooptados por organizações criminosas”, afirmou. De acordo com dados do Ministério da Justiça, de 2014, 28% das pessoas presas respondem por desrespeito à lei de drogas, índice apenas menor do que o de envolvidos com crimes contra o patrimônio, que somam 46% dos detentos.
O representante do MPF destacou também que os tribunais locais resistem à conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, apesar de essa já ser a postura do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para crimes não violentos, quando o condenado não é reincidente. Da mesma forma, para o juiz de direito e professor da Universidade de São Paulo Claudio do Prado Amaral, quem tem a chave para sair da crise penitenciária é a Justiça. “O sistema entra em colapso quando o óbvio é ignorado. As celas são espaços físicos, não metafísicos. É obrigação da Justiça respeitar o limite físico das unidades prisionais”, apontou.
A situação é agravada pelo grande número de presos provisórios, ainda que a Constituição determine que o encarceramento seja a exceção. Segundo Claudio Amaral, a prisão temporária continuou sendo a regra, mesmo após a entrada em vigor da Lei 12.403/2011, que instituiu diversas medidas cautelares, como fiança, liberdade provisória e prisão domiciliar.
Para alguns crimes, como furto, receptação e estelionato, cerca de metade dos acusados seguiu recebendo como primeira medida cautelar a prisão provisória. Já para acusações mais graves, como roubo, homicídio, tráfico de drogas e porte ilegal de arma, a prisão antes do julgamento é aplicada em mais de 90% dos casos. “Há pesquisas em vários estados mostrando que muitas pessoas detidas preventivamente são, ao final do processo, absolvidas, ou recebem uma sentença distinta da prisão em regime fechado. A justiça criminal trabalha com a presunção de culpabilidade”, afirmou.
Falta de vagas
Nesse ritmo, a população carcerária brasileira tem crescido cerca de 7% ao ano entre os homens e 10,7% entre as mulheres. Em São Paulo, onde está a maior quantidade de presos do país, o número mais que quadruplicou em 20 anos. “De 2011 para cá, o sistema prisional paulista recebeu mensalmente cerca de 800 novos presos. As últimas prisões construídas no Estado têm esta capacidade. Assim, para acabar com a superlotação, teríamos que construir uma prisão por mês”, ressaltou o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, Lourival Gomes.
O déficit do sistema prisional poderia ser ainda maior. Segundo o Banco Nacional de Mandados de Prisão, do Conselho Nacional de Justiça, quase 565 mil mandados ainda aguardam cumprimento.
Ressocialização
Para o professor Claudio Amaral, apenas o tratamento penitenciário humanizado vai aumentar os níveis de ressocialização e reduzir a reincidência criminosa. Ele defendeu ainda que afastar as pessoas da sociedade, por meio do encarceramento, dificulta ainda mais a reintegração delas à sociedade. “Os egressos do cárcere não saem mais motivados a respeitar as leis. Pelo contrário, lá eles aprendem comportamentos violentos e novas estratégias para cometer crimes. Vale o investimento econômico feito na pessoa presa?”, questionou.
Em São Paulo, um preso custa em média R$ 1.500 por mês aos cofres públicos. Por outro lado, segundo Lourival Gomes, há atualmente cerca de 13 mil condenados à prestação de serviços à comunidade no Estado, a um custo baixo para o poder público, e com nível de reincidência de 4%. Outro ponto destacado no combate à superlotação carcerária foram as audiências de custódia, tornadas obrigatórias pelo STF em 2015. No ano passado, em SP, 42,7% dos homens presos preventivamente e 65,18% das mulheres foram libertados após análise do Judiciário.
O seminário “Sistema Carcerário Brasileiro – Desafios e Perspectivas” foi mediado pelo procurador-chefe do MPF em São Paulo, Thiago Lacerda Nobre.